27 fevereiro 2010

Uma espécie de ficha de leitura#4

"De facto, desde que o mundo é mundo que a maior parte das pessoas, na sua juventude, acha que ele deve ser virado do avesso. Achavam ridiculo que os mais velhos se agarrassem à ordem existente e pensassem que o coração, que é um pedaço de carne, em vez de o fazerem com o cérebro. Essas pessoas mais novas sempre consideraram que a estupidez moral dos mais velhos era também sinal de uma incapacidade de estabelecer novas relações, tal como a vulgar estupidez intelectual; a moral que lhes é própria é uma moral da realização, do heroísmo e da mudança. No entanto, mal chegam à idade madura, esquecem tudo isso e nem querem ouvir falar dela." p.74

25 fevereiro 2010

Uma espécie de ficha de leitura#3



"De facto, o habitante de um país tem pelo menos nove caracteres: o profissional, o nacional, o político, o de classe, o geográfico, o sexual, o consciente, o inconsciente e talvez ainda um carácter privado. Encontram-se todos nele, mas dissolvem-no, e ele acaba por não ser mais do que uma pequena depressão do terreno banhada por estes muitos riachos que nela desaguam para dela voltarem a sair a encherem, com outros riachos, um novo vale. É por isso que cada habitante da Terra tem ainda um décimo carácter, que é nem mais nem menos do que a imaginação passiva de espaços não preenchidos." p.64

18 fevereiro 2010

Bichas Pela Liberdade




"Os militares não têm mais direitos do que as outras pessoas, mas acontece que os militares que fizeram o 25 de Abril foram pessoas que arriscaram toda a sua carreira por algo em que acreditavam”, lembrou o general. “Não queremos criar problemas ao poder político, mas o poder político também não pode criar problemas à sociedade civil”, sublinhou [General Garcia Leandro] em notícia hoje no Público entitulada "Grupo de militares de Abril contra casamento entre homossexuais". A sociedade civil está e estará cheia de problemas, entre os quais haver gente que se serve de Abril para vir manifestar, sem qualquer tipo de embaraço, posições reaccionárias e obscuras, de que o país nunca se viu livre e encontram expressão na hierarquia da Igreja católica que convocou, através dos seus acólitos, uma manifestação homofóbica -à semelhança de
grupos integristas religiosos - para correr uma avenida em Lisboa (que será tudo nesse dia menos a da Liberdade). Ontem como hoje a Igreja (a institucional não a formada pelos crentes) coloca-se na linha da frente da perseguição às minorias.
Face a uma lei que vem repôr a igualdade de direitos entre cidadãos onde antes não existia, grupos de cidadãos ligados à igreja, convocam uma manifestação a favor do casamento entre heterossexuais e a favor da família. Como se o casamento entre pessoas heterossexuais esivesse alguma vez em causa ou diminuido de direitos ou como se a família estivesse a ser atacada por perigosos gansgsters do asfalto. Esta manifestação seria o mesmo que face à alteração das leis anti-segracionistas nos estados do sul nos EUA, alguns brancos se manifestassem a favor do casamento entre brancos e da família branca. Os efeitos do discurso homofóbico são os mesmos que os do discurso racista. É criminoso, provoca danos e não deve ser lido de outra forma. Como sabem isso, os promotores da manifestação não a anunciam contra homossexuais mas sim a favor dos heterossexuais, não deixando, com este ziguezaguear hipócrita de se colocar no lugar onde estiveram e estão todos os que, de forma criminosa, promovem, pela acção ou pelo descuido, a desigualdade, a perseguição, o sofrimento e não poucas vezes a morte, de seres humanos.
Felizmente a sociedade portuguesa não é a mesma que os brandos costumes foram (a)condicionando. Felizmente há muitos militares de Abril (muito mais capitães que generais) que perseguem hoje os mesmos objectivos de liberdade que os fez mover nesses dias de Abril, esses e os que se lhe seguiram dos mais belos da história recente da Europa. Felizmente existem crentes, católicos ou de outros credos, que se batem e se bateram contra a opressão e pela liberdade. Felizmente há famílias cor-de-rosa, brancas, amarelas, pretas, café com creme, azuis e de todas as cores. Felizmente há um movimento associativo LGBT com mais de 20 anos de actividade, que amadureceu ao ponto de não precisar de ser homogéneo e conter em si hoje vozes que encontram na agenda partidária e institucional o melhor caminho (com a eleição de deputados pelo governo do partido) e outras que vêm na denúncia de situações de machismo ou homofobia ou mesmo em acções pedagógicas o seu campo principal de actividade.
Entre estes espaços legítimos de acção há aquele que no sábado vai reunir-se próximo da manifestação convocada pela Plataforma a favor do Casamento Heterossexual para dizer, de cara destapada, que há direitos não resgatáveis ou negociáveis. Para dizer não à Homofobia e sim à Liberdade.
Este Sábado, dia 20, às 15h em frente ao cinema S. Jorge.

11 fevereiro 2010

Daniel Bensaid "Potências do Comunismo"

Daniel Bensaid 25 March 1946 – 12 January 2010

O Cinco Dias publicou o último artigo de Bensaid, publicado e traduzido pelo site brasileiro Carta Maior.

(...) 1. As palavras da emancipação não saíram incólumes das tormentas do século passado. Pode-se dizer delas, como dos animais da fábula, que não morreram todas, mas que todas foram gravemente feridas. “Socialismo”, “revolução”, “anarquia” não estão em situação muito melhor que “comunismo”. O socialismo implicou-se no assassinato de Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo, nas guerras coloniais e colaborações governamentais até o ponto de perder todo o conteúdo à medida que ganhava em extensão. Uma metódica campanha ideológica conseguiu identificar, aos olhos de muitos, a revolução com a violência e o terror. Mas, de todas as palavras ontem portadoras de grandes promessas e sonhos de futuro, a do comunismo foi a que sofreu maior dano, por causa de sua captura pela razão burocrática do Estado e sua submissão a um empreendimento totalitário. Resta saber se, entre todas essas palavras feridas, há algumas que vale a pena reparar e pôr de novo em movimento.

2. É necessário para isso pensar o que ocorreu com o comunismo do século XX. A palavra e a coisa não podem ficar fora do tempo das provas históricas a que foram submetidos. O uso massivo do título “comunista” para designar o Estado liberal autoritário chinês pesará muito mais durante longo tempo, aos olhos da grande maioria, do que os frágeis brotos teóricos e experimentais de uma hipótese comunista. A tentação de subtrair um inventário histórico crítico conduziria a reduzir a idéia comunista a “invariantes” atemporais, a fazer dela um sinônimo das idéias indeterminadas de justiça ou de emancipação, e não a forma específica da emancipação na época da dominação capitalista. A palavra perde então em precisão política o que ganha em extensão ética ou filosófica. Uma das questões cruciais é saber se o despotismo burocrático é a continuação legítima da Revolução de Outubro ou o fruto de uma contra-revolução burocrática, verificada não só pelos processos, as purgas, as deportações massivas, mas também pelas convulsões dos anos 30 na sociedade e no aparato de Estado soviético.

3. Não se inventa uma nova palavra por decreto. O vocabulário se forma com o tempo, por meio de usos e experiências. Ceder à identificação do comunismo com a ditadura totalitária stalinista seria capitular diante dos vencedores provisórios, confundir a revolução e a contra-revolução burocrática, e fechar assim o capítulo das bifurcações, o único aberto à esperança. E seria cometer uma irreparável injustiça para com os vencidos, todas as pessoas, anônimas ou não, que viveram apaixonadamente a idéia comunista e que a vivenciaram contra suas caricaturas e falsificações. Vergonha daqueles que deixaram de ser comunistas ao deixar de ser stalinistas e que só foram comunistas enquanto foram stalinistas! (1)

4. De todas as formas de nomear “ao outro” necessário e possível do capitalismo imundo, a palavra comunismo é que conserva maior sentido histórico e carga programática explosiva. É a que evoca melhor o comum da partilha e da igualdade, o funcionamento comum do poder, a solidariedade frente ao cálculo egoísta e à concorrência generalizada, a defesa dos bens comuns da humanidade, naturais e culturais, a extensão aos bens de primeira necessidade de um espaço de gratuidade (desmercantilização) dos serviços, contra a rapina generalizada e a privatização do mundo. (...)

05 fevereiro 2010

Uma espécie de ficha de leitura#2

(...) pois nada é mais propício a desgastar a energia comum do que a pretensão de que temos uma tarefa pessoal a cumprir e não vamos desistir desse objectivo. Num tecido social irrigado por energias, todos os caminhos levam a um fim bom em si, se não hesitarmos e reflectirmos por muito tempo. Os objectivos estão próximos; mas também a vida é curta, e assim se obtém o máximo proveito, e de mais não precisa uma pessoa para ser feliz: porque aquilo que se alcança é que dá forma à alma, ao passo que aquilo que se persegue sem o atingir a deforma. A felicidade depende muito pouco daquilo que se quer, realiza-se apenas com aquilo que se alcança. Para além disso, a zoologia ensina-nos que um número de indivíduos limitados pode constituir um todo genial. p.61

02 fevereiro 2010

Uma espécie de ficha de leitura



Mas não saltou logo da cama só por ter tomado consciência de que permanecer nela equivaleria a aproveitar-se da desordem dos assuntos humanos; quando alguém, tendo em vista o seu caso pessoal, evita o mal e pratica o bem. em vez de se preocupar com a ordem do todo, está apenas, e em vários sentidos, a tentar chegar a um compromisso apressado com a sua consciência à custa da causa, a provocar um curto-circuito, a refugiar-se no seu mundo privado. p.55