29 junho 2012



Tudo o que é dado vem fora de tempo.

Não existe outro modo.
Entre o olho e a mão há um abismo,
entre o quero e o posso um afogado.
Um país que mostra sua cabeça disforme
e que se entrega a destempo,
nada é o que esperamos.
E o que chega embrulhado em papel de presente
há-de ir-se manchado de ódio.


Bailamos entre as ruínas dum encontro.
Desenhamos uma chícara de café no deserto.
Vivemos de somar e subtrair,
o que nos dá o amor, o que nos tira o medo.
Dão-nos no fim os ossos dum perfume.


Mesmo assim persistimos.
Em alguma montanha vive um peixe fugidio.
Entre números partidos desliza uma estrela.



Jorge Boccanera


encontrado na Rua das Pretas

20 junho 2012

Ajustamentos

Mais um excelente texto de Pacheco Pereira. Não tenho a convicção, como ele, de que o voto e a opinião não estejam ajustados. Estão. Claro. Das formas que as humanidades de igual forma explicam e entendem. Com todas as manhãs de Fátima Lopes e Luís Goucha e com todo o "paternalismo" do mundo estão. Por isso as eleições não podem ser, por si, a forma de escapar à prisão onde chegámos.  
"Na verdade, a única economia que conta é a "economia política", que é aliás a de Adam Smith, Marx, Schumpeter, Keynes, Friedman, e tantos outros. E se há coisas que eles sabiam é que se existisse esse "estado natural" perfeito não haveria economia, e que há "ruído" nas sociedades humanas, e os economistas que não o ouvem são maus políticos. Não há "leis da economia", como não há "leis da sociedade", há pessoas, interesses, grupos, ideias, diferentes escolas e diferentes soluções, diferentes tempos e diferentes modos. Eu não sou relativista porque não penso que valha tudo o mesmo, e porque nós podemos escolher. Em democracia esta escolha faz-se pelo voto, e não se vota em teorias sobre as "leis da economia", nem em experiências de laboratório. Felizmente, o voto ainda não está "ajustado", apesar de alguns esforços europeus. Felizmente, a opinião ainda não está "ajustada", apesar de alguns esforços portugueses".

08 junho 2012

Direito à preguiça

"Em face deste estado de coisas, não vejo, como António Guerreiro, que, a respeito do trabalho, o importante seja "deixar de pensá-lo como o que falta e começar a vê-lo como o que está a mais e precisa de ser retirado do centro da organização e do contrato social". André Barata, neste texto encosta-se a uma visão defensiva no que aos direitos do trabalho diz respeito, quando não positivista no que ao desenvolvimento económico das sociedades actuais respeita também. "Duvido que seja possível produzir mais riqueza com menos trabalho. (...) No contexto actual, com o sistema produtivo que temos, com o nível tecnológico que alcançámos (...) não é possível produzir muito mais riqueza do que a que produzimos". Ambas as visões são de uma tradição e conservadorismo a que não podemos deixar de assacar responsabilidades, também, pelo actual estado de coisas. Na medida em que contribuiu, ao longo do último século, para remeter as lutas e reinvidicações de quem vive do seu trabalho, para o campo da defesa dos direitos conquistados, esperando que uma sociedade onde o trabalho dê uma vida digna à maioria dos seus cidadãos seja a sociedade idealmente a perseguir, a melhor que se pode atingir, ou a melhor possível ao nosso alcance. Ignorando a contradição para onde logo remete esta ambição ao afirmar que não é possível atingir a sociedade de riqueza e bem estar sem exigir mais trabalho e mais alienação de quem o vende. E ignorando também as análises económicas que nos dizem que é possível, com a exploração sustentada de recursos, atingir sociedades com economias mais desenvolvidas. O texto de André Barata parece ignorar que o problema está nas formas de produção e acumulação, que o problema reside no modelo económico em vigor. E é à luz desse modelo que identifica riqueza e trabalho. Mas riqueza pode ser outra coisa, bem como "crescimento" económico, só são conceitos unívocos num mundo que se pretende único e total, que o mesmo A.Barata contesta mas de onde não chega a sair. Encostando-se aos que, do lado de lá, defendem que o capitalismo precisa de uma reforma, mas é, em suma, o que de melhor se pode arranjar. 

O texto de António Guerreiro tem a ousadia de colocar as questões que nos podem ajudar a dar o salto. As antevisões para uma outra possibilidade.Onde, por um lado, a força do trabalho consiga ser ofensiva e ditar algumas das suas próprias regras e onde, por outro, outras coisas possam estar no centro da organização e contrato social. A propriedade, por exemplo.