01 dezembro 2016

Classe


Na sua complicada simplicidade os irmãos Dardénne continuam a não deixar de surpreender e a não deixar um charco sem pedrada. Nesta história, inspirada em eventos reais, não tão inimagináveis para quem se defronta com o mundo do trabalho, os trabalhadores são confrontados pelo patrão com a escolha entre o seu bónus anual ou manter uma das colegas na fábrica. Como a sua saúde a obrigou a faltar mais no último ano o chefe escolhe-a para ser a descartável neste exercício sádico que alguns ou muitos "empreendedores" ou "monitores" de recursos humanos dos nossos dias, entenderiam como um bom estratagema de reforço de produtividade e do espírito da equipa.
Apoiada pelo companheiro inicia uma maratona de fim-de-semana para convencer os seus colegas a abdicarem do seu bónus em favor da manutenção do seu emprego.  Aquilo que podia transformar-se num exercício constrangedor e a colocar na mais vulnerável das situações - não devia caber aos seus colegas a decisão sobre o seu emprego -  acaba por ser a construção de uma identidade política, para ela e para os outros, e a conquista da sua auto-estima e dignidade, mais importantes afinal que o emprego de que depende, ela e a família. 

"(...) E uma vez que sobre este ego pequeno-burguês não se exerce uma relação de pura subjugação, o sujeito considera-o ainda um bem precioso a manter em segurança, sob cujos despojos a relação social de mercadorização encontra maneira, na circunstância, de se esconder. Assim, se na mais brutal exploração pode habitar a solidariedade, no pânico pequeno-burguês prolifera pelo contrário apenas o prestígio. Com as suas cotações oscilantes, o prestígio é o interesse que se acumula e que atrai na mercadoria-eu (....) A fórmula "não há um instante de trabalho que não possa ser poupado" é na verdade a menos subjectiva, e nela se dissolve toda a contradição entre individuo e colectividade. Não diz respeito aos pequenos em conjunto, e não diz "não há um instante meu" ou "um instante de um certo trabalho", ou"não há aqui, não há agora (para nós que estamos aqui e agora ocupados) um instante..."; mas atinge o ilimitado e afirmando não há um instante...em que não exista um proletário com o qual não se possa ser solidário (...) Esta luta -uma solidariedade efectiva, e não uma luta pelo domínio (Jean Fallot, Lutte de classe e morale marxiste,1969) - é então, ainda segundo a afirmação marxista, véritable guerre civile. Subverte os antagonismos que regulam a sociedade capitalista, anunciando a sociedade sem classes. É na solidariedade que se prepara a última batalha, que "se unem e se desenvolvem todos os elementos necessários". 

Cavalletti, Andrea, Classe, Antígona, 2010.

08 outubro 2016

Dans la ville blanche

A cidade branca de Alain Tanner é um filme sem rumo, sem nada que o segure a não ser a promessa do início, quando um marinheiro suíço desembarca em Lisboa e se filma na Rocha Conde de Óbidos. Isso e a fabulosa Teresa Madruga.


O resto é uma colecção de clichés de alguém que aterra na cidade e como Wim Winders quer fazer um guião sobre as suas impressões naquilo que resulta num postal ilustrado. Assoberbado com o Tejo e com a pobreza das gentes, as melhores incursões são aos balcões das tabernas. A câmara é errática como o próprio filme, sente-se a sua presença o tempo todo anunciando pressa, amadorismo, uma falta de perspectiva, ou as três em conjunto. As imagens em filtro são para acentuar a tristeza das paredes pobres, velhas, descascadas. "E há uma empregada de quarto, com um diamante negro entre as pernas," anuncia por carta à sua namorada, que o espera na aborrecida e rica cidade, a mulher que encontrou neste sul decadente, sítio abandonado onde se pode também abandonar por um tempo, fugindo ao trabalho e às rotinas. 
Há no entanto uma verdade neste filme sobre Lisboa. Os bairros mais antigos da cidade estavam assim há 33 anos. Abandonados, pobres, em ruínas. E as suas gentes tinham-se habituado a viver assim. 



17 setembro 2016

La Voz Dormida












 Com José Saramago numa manifestação contra a guerra do Iraque


Dulce Chacón publicou em 2002 um romance sobre a Espanha no fim da guerra civil. A forma brutal como o regime fascista tratou os vencidos e todos os que com eles identificava. A escritora percorreu o país durante alguns anos na recolha de depoimentos de mulheres que reuniu num conjunto de personagens que dão corpo ao livro. Esta obra não só presta homenagem à memória dos que sucumbiram e ao sofrimento dos familiares e amigos, como o faz de forma clara e vigorosa num ritmo autónomo e invulgar. A simplicidade na estrutura e na narrativa que consegue quem atingiu, depois de montanhas de pedra transportadas, um domínio da língua que nos faz chegar a La Voz Dormida. Morreu um ano depois, nova demais, como as mulheres de que nos veio falar.

13 janeiro 2016

As obras do Museu na Rua

O Museu Nacional de Arte Antiga teve a iniciativa de surpreender os transeuntes da cidade de Lisboa, ou melhor, de alguns bairros da cidade, com a iniciativa "Coming Out" onde quase 40 reproduções de quadros seus foram colocadas no exterior, com a respectiva moldura e legenda. Ou seja, copiando a forma como estão expostas no museu mas fora de portas, na rua Estamos a falar de obras de pintura antiga e não moderna ou contemporânea, portanto pinturas que foram encomendadas e produzidas a pensar no seu visionamento num espaço interior, a maior parte das vezes público (espaços religiosos). A novidade, o inesperado e uma ideia de democratização do acesso à arte devem ter contribuído para a recepção positiva da iniciativa. 
O desvio de quatro obras para um bairro periférico da grande Lisboa por parte de moradores deste bairro, reclamando desta forma singular o lugar de pertença à Cidade, pertença onde os bairros da Baixa e Chiado se veem também assim reforçados, traz de forma mais aguda à superfície os motivos porque  esta iniciativa pode ser uma má ideia e um serviço público duvidoso. Ação que se encaixa de alguma maneira no caminho trilhado pela atual direção do Museu, que é,  em suma, considerar o espólio de que são responsáveis uma mercadoria. Uma mercadoria é um ativo, passível de se transformar em dividendos que, por sua vez, se transformam no principal meio de subsistência das próprias obras (os custos da sua conservação, do seu estudo e manutenção). Uma ideia não muito diferente da que grassou nos últimos governos para imensos setores públicos da sociedade. Na ciência e investigação, na saúde, no ensino. E a ideologia que subjaz à própria manutenção do sistema, o trabalho que produzimos tem um valor, esse valor é transacionável no mercado de trabalho como se de uma mercadoria se tratasse, com esse valor tentamos subsistir, o que para a maioria da população na Terra significa manter-se capaz de continuar a colocar a sua força de trabalho nesse mercado.


Colocar uma obra de arte, no caso uma pintura, numa parede de um prédio de uma rua na cidade, fora do seu contexto original ou fora de um qualquer contexto (neste caso o do museu) implica que concedemos à obra plástica um valor per si, que o tem também claro, mas que esse valor é suficiente para que a imagem se imponha sem mais e cumpra o seu papel comunicacional e interaja sem mediação com o fruidor. É impôr-lhe, e ao espaço público que irá ocupar e com que vai interagir, um novo lugar. Um lugar de autoridade, muito mais pela moldura dourada e a etiqueta MNAA que traz apensa. Não se trata aqui de colocar em diálogo a pintura de determinada época com o pensamento e o conhecimento que temos dela, aquilo que nos diz sobre o seu tempo, o nosso, e as próprias artes. O diálogo  aqui é a exibição da marca MNAA e o símbolo de autoridade que representa associado a uma reprodução de qualidade numa obra que alguém não terá visto nunca, e talvez nunca tenha visto porque a tal marca de autoridade que cobre, legitima e institucionaliza o Museu, intimida e afasta grande parte da população de o visitar.
Então se as pessoas não vêm ao museu vamos levar o Museu às pessoas não é assim? Sim, fosse este tipo de iniciativa outra coisa diferente da de um claro merchandizing da própria instituição, que procura não aproximar as suas obras e o que elas nos propõem como espaços problemáticos -como todo o conhecimento - mas aumentar o score de visitantes. Principalmente os visitantes estrangeiros e os frequentadores de espaços de consumo mais associados à cultura e com maior poder de compra, a avaliar pela escolha dos bairros onde se espalharam as cópias. Operação de publicidade que de caminho rouba para título um nome com elevada carga política, "Coming Out", como se as obras estivessem escondidas e privadas da liberdade que só encontrariam fora do armário, no caso, na rua. Um caminho feito portanto, também aqui, da banalização e parasitismo de termos que têm um campo de ação presente e significativo na emancipação de tantas pessoas.

Chegados aqui podemos perguntar: então, se as reproduções na rua levaram gente ao Museu e chegada lá pôde ver os originais e entrar no espaço mediado e no contexto da obra, não foi um ganho? Não cumpriu o museu um dos seus papéis que é o aumento do número de visitantes e o aumento diversificado do seu público? Sim, se ao museu coubesse só ou fosse mesmo esta a mais importante das suas funções.

No século XIX a par da filantropia que ajudou a criar os primeiros museus nacionais, herdeiros diretos do romantismo e do advento dos estados-nação, propagava-se a ideia nalgumas áreas do saber (a saúde mental, a criminologia por ex.) de que o contacto com uma obra de arte podia transformar efectivamente um indivíduo. Um autista podia sair da sua doença, um assassino podia ser redimido e arrependido pelo simples bafejar de uma obra de pintura de um mestre consagrado. A estas crenças não foi alheia a própria discussão que se seguiria até ao modernismo do que definiria um obra de arte. Nem é alheio o facto de alguns países manterem ainda hoje o acesso livre aos seus mais importantes espólios. No Reino Unido foi isso que mereceu a gratuitidade nos principais museus, muito mais do que as conquistas democráticas em torno da cultura.

Para além de escolher (adquirir) e preservar, o Museu cria narrativas e através da interação com os seus públicos emite ideologia, o Museu é uma instituição produtora de cultura. A obrigação de criar e aumentar públicos -e de receita - é um entre os seus papéis e não seguramente o mais importante. A ideia de que as reproduções dos quadros do MNAA embelezam uma rua no Bairro Alto mais do que um grafitti um cartaz uma tabuleta de uma loja ou uma janela da mesma rua é beneficiária dessa visão de que a beleza reside nos mestres consagrados pela instituição. E mais totalitária será a ideia de que se virmos determinadas obras asseguramos a nossa pertença a um determinado património (que não é mais do que uma instituição com poder escolheu como tal), da mesma forma que se lermos as obras escolhidas pelo plano nacional de leitura podemos concluir com êxito determinado grau de escolaridade. Ou seja, tornarmo-nos em portugueses e portuguesas. Não uns quaisquer, mas aqueles que entraram nos Jerónimos, que viram as obras X e Y no MNAA. A construção da pátria é uma das narrativas do Museu. Saber que, entre os frágeis desse país se vão escolher as imagens que uma instituição com poder selecionou como construtoras da nossa identidade comum, que a mesma instituição nos impingiu (no museu escolhemos ir vê-las, na rua somos obrigados a vê-las) como suas/nossas, que os excluídos da Cidade pela economia, pela produção, venham buscar e reclamar essas mesmas imagens  para as levar para o seu bairro lembra colonialismos. Não foi o Museu buscar arte à periferia, o etnográfico recolher as estatuetas ou os instrumentos e utensílios da comunidade, foi a comunidade buscar as imagens à metrópole para se redimir e tornar melhor.



As obras que sobraram foram a Leilão esta semana tendo rendido 33 mil euros que serão aplicados na compra do quadro de Domingos Sequeira. 


Actualização a 12 Outubro.
E no trilho de uma certa ideia de colonização pela imagem eis uma iniciativa idêntica do Museu do Prado para as ruas de Costa Rica.

Waiting for the Barbarians

What are we waiting for, assembled in the forum?

            The barbarians are due here today.


Why isn’t anything happening in the senate?
Why do the senators sit there without legislating?

            Because the barbarians are coming today.
            What laws can the senators make now?
            Once the barbarians are here, they’ll do the legislating.


Why did our emperor get up so early,
and why is he sitting at the city’s main gate
on his throne, in state, wearing the crown?

            Because the barbarians are coming today
            and the emperor is waiting to receive their leader.
            He has even prepared a scroll to give him,
            replete with titles, with imposing names.


Why have our two consuls and praetors come out today
wearing their embroidered, their scarlet togas?
Why have they put on bracelets with so many amethysts,
and rings sparkling with magnificent emeralds?
Why are they carrying elegant canes
beautifully worked in silver and gold?

            Because the barbarians are coming today
            and things like that dazzle the barbarians.


Why don’t our distinguished orators come forward as usual
to make their speeches, say what they have to say?

            Because the barbarians are coming today
            and they’re bored by rhetoric and public speaking.


Why this sudden restlessness, this confusion?
(How serious people’s faces have become.)
Why are the streets and squares emptying so rapidly,
everyone going home so lost in thought?

            Because night has fallen and the barbarians have not come.
            And some who have just returned from the border say
            there are no barbarians any longer.


And now, what’s going to happen to us without barbarians?
They were, those people, a kind of solution.

(C.P. Cavafy, Collected Poems. Translated by Edmund Keeley and Philip Sherrard. Edited by George Savidis. Revised Edition. Princeton University Press, 1992)